sexta-feira, 21 de dezembro de 2012


O PINTOR
É hoje! Disse o Pintor, dirigindo-se para casa com uma enorme tela. Hoje vou pintar o Amor! Hoje vou pintar o Amor! … Repetia para si entre dentes, com um sorriso nervoso e obstinado na cara, enquanto caminhava com passos largos, como se marchasse para a mais longa e brava guerra. Hoje vou pintar o Amor! Dizia, subindo o lanço de escadas que o conduziam ao pequeno apartamento num primeiro andar, tão degradado, tão desprovido de tudo, mas que obstinadamente insistia em chamar casa.
Entrou e pendurou a enorme tela na parede. Era grande demais para um cavalete e grande demais para ele. Mas o Amor é grande, não é? Esta é a melhor tela para guardar o Amor. Foi tecida algures no Afeganistão. É do mais puro algodão, da mais formosa plantação. É branca e fina como a neve e suficientemente pura para guardar o Amor.
Sentou-se na única cadeira da única divisão da sua casa, a cerca de quatro metros da tela pendurada na parede. Fixou-a de várias posições. Abasteceu-se de café, para poder olhar melhor e manteve-se por horas seguidas a mirar a tela fixa na parede. Dizia para si: Hoje vou pintar o Amor! Mas por onde começo? Quais são as cores do Amor? Quais as formas que o definem?
Caiu a noite e o Pintor manteve-se agarrado à chávena de café, fixando obstinadamente a tela, branca como a neve, pura como a mais formosa donzela. É isso! Gritou de madrugada, assustando as baratas que se passeavam no lava-loiça. Pura como a mais formosa donzela, formosa como a mais pura donzela! Vestiu o casaco e saiu de casa, repetindo esta lenga-lenga na sua cabeça.
A noite estava a terminar e o céu era um campo de batalha, em que o laranja avançava impune em direcção ao negro. O Sol iria surgir e impor-se na escuridão dos céus. O pintor deambulava pelas ruas à procura de uma donzela pura com a cara do Amor e estava tão preocupado nos pormenores da sua busca que não se deteve no espectáculo do céu. No fogo da batalha entre a Luz e a Noite.
Na rua passavam outras pessoas, atarefadas com as suas vidas. Umas iam vender para o mercado, outras iam comprar, outras iam trabalhar, outras iam dormir. O pintor avançava demasiado preocupado para pensar nestes rostos.
Dirigiu-se para a rua mais movimentada da cidade. Entrou num café, sentou-se junto à janela com a melhor vista e pediu um abatanado. Manteve-se ali, sentado, a manhã toda. Abatanado atrás de abatanado fixava com interesse científico todas as jovens que por ali passavam. Nenhuma tinha rosto de Amor!
Levantou-se a saiu. Tropeçou num gato que apanhava os raios de Sol, esticado no meio da rua, a ronronar a quem passava. Não parou, pois o Amor não pode ter forma de gato à procura de calor e dono. Sentou-se no banco do jardim e pensou: O Amor não está no rosto de uma donzela! Pensou, então, o que seria esse Amor que ele queria pintar e que toda a sua vida lhe consumiu a inspiração. Nunca acabou nenhum quadro, pois nenhum deles tinha a perfeição e beleza dignas do Amor. Lembrou-se também que, ele próprio, nunca tinha amado ninguém. Nenhuma mulher possuía o corpo digno de ser desejado, a pureza digna de ser amada, por ele.
À sua frente brincavam duas crianças que, alegremente, riam e corriam atrás de um cão. O Pintor não olhou, nem sorriu. Obviamente que o Amor não está no sorriso de uma criança, nem na amizade de um cão. Dois pássaros cantavam por cima da sua cabeça, na copa de uma árvore. Discutiam apaixonadamente os pormenores de construção de um ninho. Mas o Pintor não ouviu, pois apenas tentava ouvir a voz do Amor, para poder pintá-la. O Amor não está no cantar de dois pássaros que constroem um ninho. Não senhor!
Lembrou-se então o Pintor que tinha encomendado a melhor tela para pintar o Amor, mas que talvez ele próprio não fosse digno dela … ou será que apenas não era digno do Amor?
Pronto! Está decidido! Não existe Amor! Disse o Pintor num grito de raiva que calou as crianças, parou o cão e afugentou os pássaros. Dirigiu-se de novo a casa decidido a pintar a vida. Não há Amor mas existe vida! Na palete colocou o verde, o vermelho, o amarelo, o preto e o branco. Fez um apanhado do dia e resolveu pintar o que se tinha passado à sua volta, quando obstinadamente procurava o rosto do Amor.
No cimo da tela pintou um céu cinzento-escuro e claro e, mais abaixo, acrescentou-lhe o laranja e misturou-o com o vermelho. Era a batalha de todas as alvoradas entre a Noite e o Sol. Mais abaixo, desenhou um prédio e no telhado, um gato preto com um olhar verde e profundo, sentado, a testemunhar a batalha dos céus. Ainda mais abaixo, numa das varandas do prédio, desenhou uma criança a sorrir com o braço esticado e um cravo na mão, a oferecê-lo a alguém que passava na rua. Ao lado da criança, noutra varanda havia roupa estendida numa corda, à espera do Sol que a iria aquecer.
No rés-do-chão do prédio, desenhou uma padaria e estava tão real que, quando vi o quadro, senti o cheiro do pão quente que os clientes que saíam da loja levavam nos sacos. Ao lado da Padaria, pintou uma Florista e à porta exibiu uns lindos malmequeres, ainda mais brancos e puros que a própria tela. Em frente às flores estava uma mulher, ligeiramente dobrada a cheirá-las. Na rua, desenhou um homem com uma pasta na mão, que acenava para a criança da varanda. Mais à direita do homem, estava um carrinho com um fogareiro a assar castanhas e um velho vendia-as a outro homem que passava. O fumo do fogareiro estava tão perfeito que logo imaginei aquele cheiro de castanhas assadas e quentinhas.
Acima do vendedor de castanhas e ao lado do prédio, pintou um parque com lindas árvores e num ramo colocou dois pássaros a construir um ninho. Parece que os oiço cantar, deste lado da tela. No meio do parque colocou dois velhos sentados num banco, que também olhavam o nascer do Sol. Ao lado dos velhos, um cão corria atrás de um gato e duas crianças avançavam de mochila às costas.
Acabou o quadro, afastou-se e pensou: Este é o mais bonito quadro que alguma vez pintei. Aqui está o Amor, não no rosto de uma jovem mulher, mas na vida que palpita das cores do dia, do rosto dos homens, nos cheiros da manhã e nas cores das flores.
Olhou para o relógio, na parede oposta à tela e notou que passara um dia desde o primeiro traço na tela. Tomou um banho, vestiu-se e saiu de casa decidido a ver os pormenores da vida, pois é neles que se manifesta o Amor. Disse boa tarde ao vizinho que encontrou nas escadas, saiu do prédio e acariciou um cão que passou por ele, na rua. Entrou no mesmo café onde tinha procurado o Amor, sentou-se e tomou o pequeno-almoço. Sorriu. Já não estava obstinado. Estava aliviado. Voltou a sair. O mesmo gato estava no mesmo sítio e ronronava da mesma maneira para as pessoas que passavam. Pegou no gato e levou-o para casa. Deu-lhe leite, lavou-o e baptizou-o de Marmelada.
Saiu de casa com uma pequena tela debaixo do braço, uma das muitas que antes achara indignas para albergar o Amor. Avançou calmamente para o mar. Sentou-se na muralha da praia e esperou. Quando no céu começou a surgir o laranja e o vermelho de mais uma batalha vencida pela noite, o Pintor pintou-o decidido a eternizar o descer do Sol no mar.

Esse foi o primeiro de muitos quadros que pintou, decidido a esquecer a essência do Amor e a pintar, apenas, as suas manifestações, o palpitar da vida.

(desconheço a autoria)